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Considerada uma das escolas mais tradicionais do estado, instituição atualmente sofre com sucateamento e redução de professores e de matrículas

O colégio Júlio de Castilhos é reconhecido como uma das instituições mais tradicionais de ensino público no estado. Com mais de um século de história, a escola, atualmente localizada no bairro Santana, na Zona Leste da Capital, se consolidou como um dos mais importantes núcleos de mobilização estudantil e dos educadores no estado.

Contudo, a instituição que já abrigara mais de 5 mil alunos durante os anos 1980 hoje conta com sequer metade disso. No mais recente processo de matrículas do atual ano letivo, foram apenas 1 mil alunos inscritos. Essa redução expressiva no número de estudantes é um dos efeitos da negligência das gestões estaduais no segmento, que geraram o sucateamento progressivo do colégio nos últimos anos.

Uma das razões para esse processo foi o próprio peso social e político que o Julinho conquistou – sendo alvo até hoje de constantes políticas de esvaziamento que buscam anular os movimentos estudantis gestados no seu interior. Uma das principais lideranças da educação pública no Rio Grande do Sul, a diretora-geral do 39º núcleo do Cpers, Neiva Lazzarotto, comenta isso foi parte de um projeto consciente de depreciação da escola.

O Julinho sempre foi vanguarda na luta da educação, nas greves de professores e funcionários organizadas pelo CPERS/Sindicato, na formação de lideranças políticas a partir de seu grêmio estudantil. Nas últimas décadas, foi feita muita propaganda contra o Julinho e houve um esvaziamento da escola. É preciso pensar em iniciativas políticas para retomar a ocupação do Julinho por inteiro. O que aconteceu não diz respeito aos profissionais que atuam lá, mas sim às políticas de esvaziamento da escola”, destaca.

Além do número de alunos reduzido, o ano letivo iniciou com falta de professores e com espaços interditados. Conforme a diretora Fernanda Schmidt Gaieski, três laboratórios localizados no segundo andar do prédio estão parados por conta do desabamento do teto, em função do temporal registrado em janeiro. Esses espaços – utilizados nas disciplinas de Biologia, Química e Física – já estavam ociosos há cerca de três anos. O motivo é falta de profissionais e de recursos para a limpeza e manutenção, o que agravou as condições precárias das salas.

Nos corredores do segundo andar do bloco D, onde estão localizados os laboratórios, desabou o forro do teto, principalmente os do laboratório de Biologia. Então estamos esperando a aprovação de uma verba extra para poder fazer a limpeza, retirada e recolocação desse forro”, explica.

A falta de repasses suficientes para dar conta das demandas obrigou a direção a priorizar obras mais urgentes em detrimento de adequações estratégicas para a ampliação do número de alunos e aprimoramento das condições de ensino.

Eu trabalho na escola desde os anos 2000, e na época, existiam mais de 4 mil alunos matriculados. Porém, quando se deixa de investir em educação e quando se deixa de lado determinados setores da escola – e principalmente o que é público – a gente sabe o que acontece, os laboratórios que se tinha, toda a qualidade que existia, das aulas práticas, foi se perdendo ao longo dos anos”, desabafa Fernanda.

A ex-monitora Fátima Terres, que trabalhou nove anos como monitora, corrobora essa noção. Para ela, o Estado pretende utilizar o prédio para outros fins no futuro, diante da elevada especulação imobiliária da região.

Sou do interior, sempre tive respeito pela instituição Júlio de Castilhos, teve ilustres alunos. Agora entra o lado político, o descaso dos nossos governantes é vergonhoso, sabemos ser um terreno valiosíssimo, acredito ser um somatório para a decadência total”, afirma.

Falta de professores atingiu um dos maiores patamares já registrados, segundo dirigentes

A falta de professores atingiu um dos níveis históricos mais elevados e se soma ao demais obstáculos que impedem a escola de operar com todo o seu potencial. Para se ter uma ideia, o ano letivo iniciou com 86 profissionais em toda a equipe, número insuficiente para dar conta da demanda dos itinerários de formação impostos pelo Novo Ensino Médio desde 2022.

Nesse contexto, o aumento das disciplinas sem o aporte necessário de docentes sobrecarrega os professores e inviabiliza que os conteúdos sejam trabalhados adequadamente.

Com as trilhas, aumentaram os componentes curriculares e a gente tem que fazer uma distribuição em cima disso. A cobrança da SEDUC fica tensa porque eles cobram destalhes desnecessários para poder dispor de um profissional para que ele possa assumir (essas disciplinas)”, destaca Fernanda.

No início do ano letivo, faltavam docentes para pelo menos 68 trilhas de aprendizagem, o que invariavelmente prejudica o andamento das aulas. São 25 turmas do 1º, 2º e 3º anos nos três períodos: manhã, tarde e noite.

A falta de professores é muito séria. O Julinho nunca teve uma situação como de falta de professores como a atual, na qual os alunos vão para a escola e terem dois, três períodos de aula porque não tem professor”, explica a diretora.

A ex-diretora e atual professora de Biologia do Julinho, Paola Cavalcante Ribeiro – que antecedeu a atual gestão da escola – comenta que a carência de professores e outros profissionais da equipe pedagógica é uma dificuldade histórica que se repete a cada ano. Entretanto, a inclusão das trilhas no quadro de disciplinas agravou o problema, uma vez que não houve qualquer processo de formação de docentes para ministrarem aulas nessas modalidades.

A gente carece de apoio de pessoas. A gente inicia o ano com o quadro de professores sempre faltando, principalmente nas matérias do Novo Ensino Médio. São disciplinas muito novas que os professores nem sempre estão apropriados e não tiveram uma formação específica, pois há uma fragilidade. A gente resiste de abraçar disciplinas e nichos de conhecimento que não fazem parte da área específica de conhecimento.”, comenta Paola.

Além da falta de docentes, a carência de profissionais suficientes para tarefas de manutenção de salas de aula, laboratórios e outras dependências do prédio é outro desafio a ser enfrentado diariamente pela direção da escola. Hoje, são apenas três serventes de limpeza que têm a atribuição de higienizar diariamente uma estrutura que contempla 48 salas de aula, banheiros, biblioteca, ginásio, quatro laboratórios, sala de recursos multifuncionais, sala multimídia e sala de robótica. 

Ainda existem outros três profissionais que atuam com delimitação de função, ou seja, auxiliam também no serviço diariamente, mas com atividades restritas. A Seduc afirma que outro profissional já foi contratado, mas ainda não começou a exercer as atividades.

Tudo é muito demorado e complexo. Estamos a 28 dias aguardando a servente que foi aprovada contratação”, afirma a diretora Fernanda Gaieski.

Atualmente, para preencher o quadro de profissionais que atuam em itinerários formativos no Ensino Médio, estão em andamento nove solicitações. Trata-se de uma solicitação de servente, uma de monitor, cinco de ampliação de carga horária nos componentes de “Empreender-se e Inovar para Sustentabilidade”; Língua Portuguesa; Linguagens Estruturais e Artísticas; além de uma ampliação e uma contratação emergencial em andamento para Estatística Básica.

Situação dos laboratórios expõe descaso com escola que é referência em robótica

A impossibilidade de utilização dos laboratórios da escola pode ser considerada ainda mais grave levando em conta o histórico da instituição de ensino no desenvolvimento de projetos ligados à tecnologia e robótica – sendo destaque em uma série de eventos da área nos últimos anos.

Nós somos a única escola pública a participar de uma feira do Instituto Federal, ficamos em segundo lugar no Campeonato Marista de Robótica e assinamos um Termo de Cooperação com a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul para trabalhar com automação. Além disso, vamos ter uma atividade ligada à Unisenac também nessa área de tecnologia”, relata a diretora Fernanda.

Fernanda destaca que esse patamar só foi atingido a partir do desenvolvimento de projetos em horários fora da sala de aula, nos quais o docente tem condições e tempo para trabalhar.

Se eu não tivesse essas professoras com essa carga horária fora da sala de aula não teríamos atingido esse patamar, algo que a Seduc não enxerga e não apoia. No momento em que a gente tem isso para oferecer para o aluno, ele tem condições de desenvolvimento, e hoje a gente sabe que isso está fazendo parte da vida dos jovens e que eles precisam estar ali, pois têm condições iguais a de um aluno de escola particular. Está faltando a secretaria ir à escola e ver o trabalho dos alunos e professores, ao invés de cobrar por um computador a carga horária de professores”, lamenta.

Seduc alega que mudança em processos de licitação vai agilizar obras

Questionada a respeito dos aportes necessários para garantir a plena operação do Julinho, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) afirmou, por meio de nota encaminhada via assessoria de imprensa, que está “ciente” de todas as demandas e “atua diretamente com a equipe diretiva, por meio da 1ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE)” para dar conta de todas as demandas.

Sobre as obras pendentes, a Seduc afirma que foram enviados recursos de R$ 115 mil correspondentes ao Agiliza Educação e o adiantamento de quatro meses da verba de Autonomia Financeira, que, no caso do Julinho, é de R$ 16 mil mensais.

A Seduc alega ainda que, após as reformas do temporal, restariam R$ 60 mil no caixa da escola, que poderiam ser utilizados nos consertos do teto dos laboratórios interditados e no conjunto de obras pendentes.

Porém, isso é desmentido pela diretora Fernanda Gaieski. Ela destaca que, além dos recursos serem insuficientes, a escola ainda possui despesas adicionais por conta do Núcleo Estadual de Jovens e Adultos (NEEJA) Menino Deus, que ocupa uma área no interior do prédio.

Não temos essa verba de 60 mil no caixa da escola, pois as manutenções previam ser realizadas e ainda contamos com o NEEJA que foi deslocado de seu prédio, ocupa uma área dentro do Julinho e não participa das despesas. Mesmo assim continua recebendo verba como uma escola própria”, explica.

A Seduc afirma que “equipes da Secretaria de Obras Públicas (SOP) farão nova vistoria no local para acrescentar os itens mencionados pela equipe diretiva”. A secretaria afirma que “serão verificadas alternativas para que a questão seja solucionada brevemente”, – por meio de aumento da verba do Programa Autonomia Financeira, por dispensa de licitação ou via Programa Agiliza Educação e tomada de preços pela própria direção da instituição”.

Ainda conforme a Seduc, a implantação das atas de registro de preço regionalizadas – que funciona como um “catálogo de serviços”, que ficará à disposição da Secretaria de Obras Públicas (SOP) para atendimento das instituições de ensino –vai designar uma empresa responsável por atender cada grupo de escolas, o que dispensaria a necessidade de novas licitações.

Uma história de lutas e de formação política que gera novas lideranças

Em sua trajetória que completa 124 anos em 2024, o Colégio Júlio de Castilhos passou por uma série de processos históricos que geraram profundas transformações sociais no Brasil. O colégio que iniciou as atividades ainda no período da República Velha, também passou por duas ditaduras (Era Vargas e ditadura militar), momentos nos quais havia violenta repressão contra movimentos políticos e sociais no país. Mesmo assim, continuou sendo um exemplo a ser seguido na organização de movimentos políticos estudantis oriundos da classe trabalhadora.

Fundado em 23 de março de 1900, com o nome de Ginásio do Rio Grande do Sul, teve sua sede original localizada em um porão de um do Instituto de Engenharia de Eletro-Técnica. Foi somente no ano de 1908 que recebeu o nome de Júlio de Castilhos. Alguns anos depois, a sede foi transferida para o local da então faculdade de economia da UFRGS.

Na época, era considerado um dos mais sofisticados prédios de Porto Alegre. A fachada chamava a atenção por ser composta de dois obeliscos que representam as artes e as ciências.

Porém, um incêndio com causas jamais esclarecidas ocorreu em novembro de 1951. Com indícios de “sabotagem”, o sinistro destruiu totalmente o prédio e obrigou a colégio a ter diversas sedes improvisadas até o final da década de 1950, quando foi instalado no local utilizado até os dias de hoje. Da sede antiga, restou um busto de Julio de Castilhos com dois grifos – que são mantidos até hoje no saguão do atual colégio.

Ao longo de sua história, o Julinho foi um dos centros da luta pela garantia de direitos e por mais investimentos na educação pública. Isso foi o estopim para a formação de importantes lideranças políticas e intelectuais gaúchas, como Luciana Genro, Leonel Brizola, Moacyr Scliar, Tamyres Filgueira e tantos outros.

Uma dessas lideranças oriundas do Julinho é a coordenadora da Assfurgs e pré-candidata do PSOL à vice-prefeitura de Porto Alegre, Tamyres Filgueira. O primeiro contato com a mobilização política despertou a sua vocação pela política.

O Julinho foi um marco em minha vida porque foi o primeiro contato com a vida política organizada e isso fez muita diferença na mulher que sou hoje, enquanto mulher negra e mãe trabalhadora e pertencente à classe trabalhadora”, ressalta Tamyres.

Em pouco tempo, Tamyres se tornou líder de turma e integrou do grêmio estudantil, fazendo parte de diversas mobilizações sobre demandas importantes da comunidade estudantil e da sociedade em geral.

Eu entrei no Julinho em 2004, quando o colégio estava voltando de uma greve, em abril. Ali foi o primeiro contato com a política. Eu virei líder de turma e naquela época, os líderes eram de um conselho de alunos, que discutia as demandas do grêmio. Ocupar aquele espaço foi exercitar em mim algo que eu não fazia antes, que é pensar a escola, pensar a sociedade. Alguns meses depois, passei a ter contato com a vida política organizada e ter uma consciência mais crítica a respeito da sociedade e como sujeito de transformação da classe trabalhadora. Isso fez grande diferença em minha vida e faz ser quem eu sou hoje”, conta Tamyres.

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Marcelo Passarella
Jornalista